Pesquisa mostra que aproximadamente 72% dos homossexuais presentes à Parada do Orgulho GLBT de São Paulo em 2005 já foram vítimas de algum tipo de discriminação por conta de sua orientação sexual. Travestis e transexuais são as maiores vítimas de violência e marginalização.
PARADA GLBT
Fernanda Sucupira - Carta Maior
SÃO PAULO – Aproximadamente 72% dos homossexuais presentes à Parada do Orgulho GLBT (de Gays, Lésbicas, Bissexuais, e Transgêneros) de São Paulo já foram vítimas de algum tipo de discriminação por conta de sua orientação sexual, no ambiente familiar, de trabalho, entre amigos e vizinhos, no comércio, no sistema de saúde, na escola, faculdade ou em delegacias, entre outros locais. Além disso, pouco mais de 65% deles já sofreram agressões verbais, físicas ou sexuais pelo mesmo motivo. É o que revela a pesquisa “Política, Direitos, Violência e Homossexualidade”, que já vem sendo realizada desde 2003 no Rio de Janeiro, e de 2004 em Porto Alegre. Esse quadro de violência e preconceito mostra que não é à toa que foi justamente“Homofobia é crime!” o tema escolhido para a parada deste ano, que completou uma década de existência, levando às ruas da capital paulista cerca de 2,5 milhões de pessoas, no dia 17 de junho.
De acordo com o estudo, é por amigos e vizinhos que eles mais afirmam ter sido discriminados (34%). Depois, vêm os casos na escola ou na faculdade (32%), seguidos pelas situações de exclusão vividas no ambiente familiar, relatadas por quase um quarto dos entrevistados. Ou seja, é justamente nos convívios mais íntimos em que foram apontados mais casos de discriminação. Encontram-se nas duas últimas posições ambientes normalmente mais hostis, como o trabalho (16%) e os serviços de saúde (12%). “Uma possível interpretação é que exatamente dessas pessoas eles esperam maior apoio, por ser mais dolorido isso os marca tanto. A pesquisa depende da percepção e da memória dos entrevistados”, avalia a antropóloga Regina Facchini, vice-presidente da Associação da Parada GLBT de São Paulo (APOGLBT-SP) e uma das autoras do estudo.
É também nesses ambientes em que a orientação sexual é mais compartilhada, lembra Sérgio Carrara, coordenador do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (Clam), que organizou a pesquisa. “Os entrevistados são gays, lésbicas, travestis e transexuais com diferentes níveis de visibilidade. É nos círculos mais íntimos, onde eles se assumiram, em que isso ocorre. Sendo a orientação sexual menos visível, a possibilidade de discriminar é menor. Além disso, eles estão falando das relações mais significativas, afetivamente mais relevantes”, reforça Carrara.
A violência física já foi sofrida por 18% dos entrevistados, a maior parte dos casos em espaços públicos, e em 48% deles por autores desconhecidos. Em casa, aconteceram 17% das agressões. O padrão de gênero que marca os diferentes perfis de violência contra homens e mulheres em geral é reproduzido com gays e lésbicas. Analisando separadamente a situação das mulheres bissexuais e lésbicas, observa-se que a violência no ambiente doméstico cresce de forma considerável em comparação com homens bissexuais e homossexuais. Enquanto nos dois grupos femininos foram registradas taxas de 22% e 27%, respectivamente, nos masculinos ela é muito menor, atingindo 8% e 16%.
“Esse resultado está de acordo com o padrão de vitimização das mulheres em geral, que sofrem mais com a violência doméstica. Elas são homossexuais, mas também são mulheres. Além disso, é preciso levar em conta o significado das relações familiares para as mulheres. Elas são bem mais sensíveis à discriminação que ocorre em casa”, explica Carrara. Ao mesmo tempo, os homens costumam ser mais agredidos nas ruas do que no ambiente privado, já que normalmente estão mais expostos ao ambiente público. Isso mostra que a orientação sexual não altera a pressão social em relação ao gênero nem as desigualdades entre homens e mulheres.
Aproximadamente 60% dos entrevistados afirmaram já ter sido agredidos verbalmente ou ter recebido ameaças de agressão física. “Esses altos índices de pessoas que sofreram discriminação ou agressões verbais mostra que essas são experiências constitutivas da própria homossexualidade”, diz o coordenador do Clam.
AUSÊNCIA DE DENÚNCIA Cerca de 40% dos entrevistados que disseram ter sofrido agressões não denunciaram nem relataram o fato a absolutamente ninguém. Dos que falaram sobre isso com alguém, 41% contaram apenas para amigos, aproximadamente 16% para familiares e apenas 14% chegaram a denunciar em delegacias ou para policiais. Isso mostra que muitos preferem vivenciar essa experiência de forma isolada e solitária a compartilhá-la com alguém. Existe, nesses casos, o temor de serem revitimizados por pessoas próximas ou por autoridades policiais, de serem agredidos novamente nas delegacias ou em casa e terem seu sofrimento aumentado. Isso porque existe uma aceitação no Brasil em relação a esse tipo de violência e discriminação.
Segundo Carrara, ainda não se discutiu no país se as agressões verbais são impróprias, como ocorreu em relação às agressões racistas, que acabaram sendo coibidas por lei. Nesse sentido, está em tramitação na Câmara dos Deputados, desde 2001, um projeto de lei da deputada Iara Bernardi (PT-SP), que criminaliza a homofobia e é bastante apoiado pelo movimento GLBT. “A aprovação desse projeto seria um passo importante, mas a lei não muda a realidade imediatamente, por isso não se pode ancorar todas as esperanças nela. Acredito, entretanto, que ela pode ter um impacto cultural importante a longo prazo, impondo limites éticos para as atitudes e comportamentos, colocando piadas homofóbicas e agressões como fora da lei”, avalia Carrara.
De acordo com a vice-presidente da Associação da Parada GLBT de São Paulo, existem muitas instituições sociais, com grande penetração na sociedade, que dão base à homofobia. “Os discursos religiosos fundamentalistas são um exemplo disso. Quando alguém prega dentro de uma igreja que a homossexualidade é uma aberração, isso dá suporte a esse tipo de violência e ensina a comunidade a aceitá-la”,diz Regina. Para ela, a lei seria importante para desnaturalizar essa violência, mostrando que, na verdade, constitui crime e violação de direitos humanos. No entanto, ela considera que as paradas do orgulho GLBT, que reúnem milhões de pessoas a cada ano, grande parte delas heterossexuais, são uma estratégia mais eficiente de conscientização e sensibilização em massa, para ampliar o campo social de apoio e à população GLBT e seus direitos.
TRANS SOFREM AINDA MAIS Na comunidade GLBT, os que mais sofrem com a discriminação e a violência é o grupo dos transexuais e travestis, conhecidos como “trans”. Eles relatam o dobro ou mais de casos de marginalização por conta de sua orientação sexual no ambiente religioso, no comércio, no trabalho, nos serviços de saúde e em relação à atuação dos policiais. Enquanto cerca de 20% dos entrevistados em geral registraram suas histórias de exclusão no comércio, 18% quanto aos policiais e 23% no ambiente religioso, os trans apontam porcentagens bem mais altas, respectivamente, 47%, 45% e 47%. Além disso, eles são mais agredidos em espaços públicos (68%), os relatos de agressões verbais passam de 77% dos entrevistados e os casos de violência física são destacados por 54% deles. A violência sexual, denunciada por 14% do total dos entrevistados, chega a quase 24% entre transexuais e travestis.
“Os trans são os mais violados em seus direitos. Por trás disso, estão as normas da sociedade, que determinam que uma pessoa tem que ser homem ou mulher. Quando a vivência de alguém questiona essa divisão, como a de um travesti com pênis e seios, que vive com tranqüilidade essa ambigüidade, a violência passa a acontecer. Com os transexuais é a mesma coisa, já que não são claramente homens nem mulheres. Isso perturba a sociedade, o que volta em forma de violência e exclusão”,interpreta Regina.
“A pesquisa aponta que alguns grupos são mais vulneráveis à violência que outros. Os trans são mais atingidos pelos diferentes tipos de discriminação e violência física por conta de uma visibilidade maior de sua própria orientação sexual. Há também outras especificidades para serem levadas em conta. Os trans se encontram em uma situação de marginalidade grande em relação ao trabalho e à escolaridade, que se cruzam e potencializam a vitimização. As oportunidades de trabalho são muito reduzidas, por isso muitos deles trabalham nas ruas, como profissionais do sexo, em ambientes muito violentos. Assim, há um acúmulo de processos de marginalização que levam a essa situação”, avalia Carrara.
REDE TV! FORA DO AR Por outro lado, a comunidade GLBT obteve uma vitória histórica em relação à homofobia. Em outubro de 2005, foi movida uma ação civil pública pelo Ministério Público Federal (MPF) e seis organizações da sociedade civil, contra uma série de violações de direitos humanos e estímulo à homofobia exibidas no quadro de pegadinhas do programa Tarde Quente, apresentado pelo humorista João Kleber, de segunda a sexta-feira. Entre as cenas enviadas à Justiça Federal pelo MPF estavam principalmente quadros em que os atores que representavam os homossexuais eram humilhados e terminavam punidos com socos e pontapés dos passantes. Depois de retirar a emissora do ar por mais de um dia, devido ao descumprimento de determinações judiciais de direito de resposta coletivo, a Rede TV! propôs um acordo com os autores da ação.
A emissora teve que pagar R$ 200 mil para produção de programas de contra-propaganda, veiculados no lugar do humorístico que ridicularizava e agredia homossexuais, entre outros grupos. Foram trinta edições do programa “Direitos de Resposta”, de dezembro a janeiro deste ano, produzidas pelas organizações que moveram a ação e pelo MPF, promovendo e defendendo os direitos humanos. A Rede TV! ainda teve que depositar R$ 400 mil no Fundo de Defesa de Direitos Difusos, pela violação dos direitos humanos e deseducação da população brasileira.
“A mensagem transmitida por esses programas que foram retirados do ar era de legitimização da violência física em relação aos homossexuais, isso sem falar na violência simbólica”,afirma o procurador regional dos Direitos do Cidadão no Estado de São Paulo, Sérgio Suiama, um dos responsáveis pela ação. “A TV é o único serviço público que alcança todos os municípios, superando até os Correios, e está presente em 90,3% dos domicílios brasileiros. Ela transmite apenas uma visão das coisas, que se consolida em preconceitos necessariamente, pois ela não tem o pluralismo de idéias necessário para formar uma convicção”, critica Suiama.
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